“Oh amorzinho, foi assim que eu aprendi quando era garota!”

Há mais vida no Bairro Alto. Foi o que pensámos quando entrámos no nº118 da Rua dos Poços Negros. Uma movimentação de várias pessoas rodopiavam o espaço. Duas avós à porta recebiam os participantes para o workshop de costura que estava a decorrer. No centro da oficina, encontrava-se a área destinada à ação de corte e costura. Várias avós esperavam sentadas pelos seus formandos, para transmitir o seu largo conhecimento de diferentes tipos de pontos: cheio, em cadeia ou em flor. Afinal estas avós têm mais de 40 anos de experiência e temos muito para aprender com elas.

A Avó Veio Trabalhar é um conceito que nasceu nas cabeças de Ângelo e Susana e está a ser posto em prática no terreno desde outubro do ano passado. 

Numa sociedade cada vez mais envelhecida, em que na maioria dos casos, os seniores são negligenciados e postos de parte, como população inútil, a Avó Veio Trabalhar surgiu como uma realidade urgente para a mudança deste paradigma. Aqui os avós ensinam, aprendem, criam, e ainda se acompanham. Aqui os avós trabalham, respiram, vivem e emanam vida. 

A Magazine que gosta de andar a par de tudo o que são novas tendências sociais, foi experimentar um dos workshops promovidos pela A Avó Veio Trabalhar, no passado dia 21 de março. No meio da labuta e aprendizagem dos lavores tradicionais, aproveitámos para conversar com os seus fundadores Ângelo Campota e Susana António, e também com algumas avós, como a D. Fernanda.

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Como nasceu a Avó Veio Trabalhar?
Susana: Esta ideia já tem alguns anos. Eu sou designer e quando saí da faculdade não queria fazer apenas design de produto, queria mais. Ao mesmo tempo sempre tive um carinho especial pela terceira idade. Gosto mesmo muito, muito de velhinhos. Se virem um grupo de crianças e um grupo de velhinhos a Susana está com o grupo de velhinhos. Comecei a trabalhar como voluntária num lar em Setúbal, onde através dos lavores criávamos pequenos produtos. Senti que o design enquanto ferramenta de capacitação e transformação das pessoas era poderoso, era diferente de outras ferramentas. Em 2005 aconteceu uma exposição “My Worl New Craft” em que procuravam  novos artistas que tivessem uma abordagem diferente do artesanato. Concorri com os trabalhos que desenvolvemos no lar e fomos selecionados. Fomos os artistas mais mediatizados da Bienal de 2005, viajámos pelo país todo e eu senti que era na área do Design Social que eu queria estar. Nos dez anos seguintes trabalhei como consultora, e a “questão dos avós” desenvolvia-a apenas em pequenos workshops pontuais. Um dia fui contatada pelo Remix, um projecto que estava a começar, que o Ângelo coordenava, e precisavam de designers que quisessem trabalhar com a comunidade. Aceitei o desafio e acho que somos um pouco almas gémeas. Houve uma empatia muito grande. A partir daí sentimos que íamos sempre trabalhar juntos. Na altura fazíamos consultoria para outras organizações, como freelancers, e há dois anos decidimos criar a Fermenta, uma associação que trabalha para a inovação social através das ferramentas do design. 

Ângelo: Sempre nesta óptica da capacitação de grupos e de comunidades. Não trabalhamos necessariamente apenas com idosos, desenvolvemos actividades num âmbito transversal da comunidade. No caso da A Avó Veio Trabalhar estamos focados na população idosa, mas temos outros projectos com adolescentes, empregados de longa duração, entre outros públicos.

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O Ângelo é psicólogo, a Susana designer. No vosso entender, porque é que esta vossa dupla resulta tão bem?
Ângelo: Eu tenho uma linguagem muito própria, a Susana tem uma linguagem muito própria também. Eu confio cegamente no trabalho da Susana e vice-versa.

Susana: Nós completamo-nos. Por exemplo eu foco-me muito no “fazer” mas não comunico, ou seja, tenho muitas ideias de estratégia, mas depois a comunicação acaba por ficar para trás. O Ângelo é uma pessoa que consegue passar a mensagem, mediatizar e tocar uma série de pessoas, a quem eu não chego, porque estou no meu buraquinho a trabalhar com a minha comunidade. Cada um complementa o que falta ao outro. 

Depois da Fermenta criada, como desenvolveram a Avó Veio Trabalhar?
Ângelo: surgiu o BipZip, programa promovido pela Câmara Municipal de Lisboa. Recuperámos esta fantasia da ideia da avó. Estudámos intensivamente o que seria necessário para desenvolver este projeto durante um ano, qual o terreno a abranger, que tipo de ferramentas é que queremos associar para pôr em prática este projeto. Escrevemos a candidatura e para nossa felicidade o projecto foi aprovado e começámos em outubro do ano passado. 

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O que é que acontece na A Avó Veio trabalhar?
Susana: Nós criamos coleções com os avós e vendemos produtos, sendo que apenas vender os produtos muitas vezes não potencia a auto-sustentabilidade de um projeto, oferecemos também serviços, como este workshop na comunidade. Desenvolvemos outros serviços, como brindes ou desafios que empresas nos propõem. Assim temos vários canais que possam auto-sustentar e financiar o projeto para continuar. 

Que colecções já desenvolveram e com que técnicas?
Susana: As coleções são sempre diferentes, e a técnicas utilizadas também. A primeira coleção foram luvas, agora foram almofadas e a seguir vão ser tapetes. A ideia é espicaçarmos criativamente o grupo todo com novas técnicas, novas abordagens e novos objectos. Já usámos o bordado tradicional, mas de lã sobre lã (as luvas), fizemos agora para as almofadas vários tipos de ponto, trabalho de tear e serigrafia. 

Quais são as maiores vantagens deste projecto?
Ângelo: Nós começámos com um grupo muito restrito de pessoas, com mecanismos de defesas muito acionados “eu não sei fazer nada, eu não quero fazer nada, eu não tenho interesse” , mas rapidamente isso foi desmistificado. Por terem criado uma empatia gigante connosco, começaram a perceber que esta recuperação dos lavores domésticos, faz e fazia parte da infância deles é um mote para recuperar uma tradição. E no fundo aqui criam-se objectivos, responsabilidades e o gosto por estar ativo, contrariando a vida sedentária que muitos avós daqui tinham. 

Susana: Os avós agora voltam a trabalhar por objectivos e têm esta noção de trabalho, voltando a ter um papel activo na sociedade. 

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Nós aprendemos com os avós, e eles o que aprendem convosco?
Ângelo: No fundo aqui trabalha-se a capacitação dos próprios seniores através do design. Jamais eles pensaram em trabalhar sobre ilustração, ou bordar um céu laranja em vez de azul. Os avós percebem que é possível bordar sobre um desenho que já está impresso no tecido. Nós inconscientemente também trabalhamos a educação visual. 

Susana: E daí a duas semanas já são eles que nos trazem novas ideias. Nós inclusive, mostramos-lhe muitas ideias de criativos internacionais, outros artesãos e artistas, que trabalham muito esta questão dos lavores, de uma maneira inovadora. 

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Porque é que vocês consideram que é importante resgatar as nossas raízes e as nossas tradições?
Susana: Eu acho que as pessoas começam começam a ligar muito a esta história que é o Storytelling. Um objeto não é só um objeto, mas também a história que ele conta, a memória que guarda ou o calor que transmite. Eu acho que cada vez mais nesta cultura de consumo as pessoas começam a dar valor a esta coisa que é diferente, que não é só o objeto. Como temos acesso a uma panóplia gigantesca de objetos e imagens, falta-nos uma alma. Eu acho que a alma é este contar das histórias, ou este valor acrescentado que está por detrás das coisas. 

Como é que os avós “se candidatam” para virem trabalhar aqui convosco?
Ângelo: De uma forma muito indirecta, nós nem temos uma posição muito activa. Nós criamos laços e neste momento já somos família destas pessoas. Na verdade eles convidam-se uns aos outros para virem experimentar, em vez de estarem sentados o dia todo.

Susana: A Filomena por exemplo trouxe uma amiga, e na quarta-feira esta já estava a telefonar a uma outra vizinha a chamá-la.

“Estás em casa, sem nada para fazer! Olha eu sinto-me muito melhor desde que vim para cá.”

N’A Avó Veio Trabalhar os avós são gente. São gente que nos inspira e ensina, sempre com muita paciência. N’A Avó Veio Trabalhar canta-se ao som de Amália Rodrigues e gargalha-se ao tom da alegria que trespassa pelos lavores. Em Abril vão inaugurar o novo espaço da sede e terão muitas novidades!

D. Fernanda, o que é faz para cultivar essa alegria?

“Olhe amorzinho, eu um dia tive um namorado, que era assim meio tristonho, e ele dizia-me: gostava tanto de ser assim como tu, alegre com a vida! Eu respondi-lhe, só não és porque não queres! Ri-te homem!”

Chandi e Fernanda

A Avó Veio Trabalhar Site

Contactos: 927628363 / 936243762

Fotografias de Maria Silva